segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Querido diário

Lá fora chove. "Este é o melhor tempo das vossas vidas", lembro-me, descrente, do que dizem da adolescência. O meu despertador acorda-me mais cedo que a qualquer pessoa da casa, mais cedo do que o limiar da violência, e como efeito secundário chateia os meus pais. Efeito "secundário"? Ele sobrecarrega a vida como os outros. Por acordar esbofeteado, olho irritadamente e sem ar para o vazio à minha frente... Todo porco, dirijo-me para a casa de banho, colada ao quarto para minimizar o tempo inútil. Desperdiçar tempo é dos meus poucos prazeres hoje em dia, e quase nunca tenho tempo para isso. Todos dependem de mim para irmos trabalhar rapidamente. Em quatro segundos passo do quarto para o corredor e depois para a casa de banho, onde ligo a luz. Escuro, claro, escuro, claro. Quase com epilepsia, dispo-me e ponho a água a correr para apressar e desperdiçar recursos, como não devíamos, mas não me chateiem com moralidades a esta hora. De pés frios levo com água quente no corpo e, passados uns segundos depois do choque inicial doloroso, chego finalmente ao pequeno prazer da manhã. Preso naquele cubículo, sinto-me como uma pequena chama dentro dum iglu no Pólo Norte. Durante este ganhar de lucidez vou-me lembrando que não gosto nada disto tudo, vou pensando "porra tenho azar", vou acendendo todas as esperanças e rancores que vão durar o resto do dia. É péssimo. De banho tomado à pressa, saio a apanhar frio e a sentir-me acordado, e como estou mais consciente sinto-me mais porco. Pergunto-me como hei-de melhorar esta vida, enquanto a minha mãe vai fazendo o mesmo ritual que eu, um pouco mais à sua maneira. E eles? Devem pensar que não podem fazer quase nada, e quase nada é o que fazem todos os dias... São estes rasgos de esperança rotineiros e sem sentido que nos fazem mais uns idiotas constantes que por aqui vivem. Vestido com um pouco de cuidado para tentar agradar um pouco a alguém, passo pelos objectos entediantes, que desde o primeiro mês de existência que já merecem ter bolor, já deviam ter sofrido neuroses em massa, morrido e renascido. Sei que tenho que ir para a cozinha, onde por alguma lógica masoquista tento satisfazer o sono com uma tigela de cereais. Penso outra vez nos meus problemas, principalmente os amorosos, e como não há nada para pensar ponho-me só a mastiga-los juntamente com os cereais. Oiço no esquentador que a minha mãe está a tomar banho e penso nos meus pais, que têm uma vida igual à minha com a excepção de que já perderam a esperança. Fico sempre cheio de ansiedade quando estou a comer, não sei porquê. Quando escapo ao pequeno almoço vou lavar os dentes, altura em que olho para mim no espelho e apenas ele reflecte. Estou demasiado cansado para mais. A minha mãe já sai, e sobram-me dez belos minutos antes que o meu pai se despache para me levar. Vem-me à cabeça que ela vai tomar a ansiedade primeiro que o meu pai, sem o chegar a ver até à noite. Dez minutos depois ele vai ao mesmo sítio fazer o mesmo. Esforço a preguiça ao responder ao "txau" dela, com medo que fique magoada, mas isso realmente não adianta muito. O tempo passa e quase adormeço antes de ser arrepiado por um enervante "Bora!" do meu pai. Deixo sempre a mala para o fim, de propósito. Ainda não a fiz quando ele apita lá de fora e me põe nervoso. Abro a porta de casa para um horizonte cinzento e matinal à minha frente, que parece esconder um exército aterrador. Olho para o meu pai fechado no carro, parece estar a tentar dizer algo com muita urgência, "Este é o melhor tempo das vossas vidas" lembro-me, e logo depois de abrir a porta do carro entro em pânico.
 
Creative Commons License
This work is licensed under a Creative Commons Attribution-Noncommercial-No Derivative Works 2.5 Portugal License.