sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Esquema

- As nuvens deslocam-se a uma velocidade incrível!! - Era o pensamento do dia de quinta feira. Estava à janela a fumar o seu cigarro do jejum, mal acordado. Enquanto olhava para o céu despreocupadamente. Os dedos amarelos do fumo, especialmente o índex, tremiam. Não de frio, não de medo. Já o fazia por obrigação, não lhe dava qualquer prazer ou mudança. Nem chegava a ser um hábito. Era pior. Ele era assim com tudo. Comia, por comer. Não saboreava e mastigava roboticamente, era um mecanismo, como tudo nele. Nada lhe sabia bem, por outro lado, também nada lhe sabia mal. Era uma espécie de vazio. Um vazio repleto. "As nuvens deslocam-se a uma velocidade incrível", era isto o seu quotidiano. Uma observação, uma piada, uma frase, coisas tais que repetia energética e animadamente. Como se fossem únicas, como se fossem suas. Os pequenos segundos em que pensava ou ouvia esta unicidade fascinante faziam dele uma pessoa. Ao invés de uma sombra.
Não se podia dizer que tinha amigos, embora falasse com toda a gente. Uma vez virou-se para mim e disse uma piada desinteressante que repetia às pessoas nesse dia. Riu-se a bandeiras despregadas. Eu ri-me com ele, por simpatia ou por desprezo. É parecido. Era homem para ter pena dele, se não tivesse mais em que pensar. Pena?! Ele parece sempre mais contente que eu...Anda sempre a dizer algo.
Mais tarde viria a encontrá-lo caído no chão. "Então?", perguntei talvez apenas com vinte por cento de preocupação verdadeira. "Morreram... Todos...Todos eles..." disse ele a sorrir tristemente. "Morreu quem?! Quem morreu?!" - que stress! "Todos os que mereciam...houve um que se riu". Foi assim que conheci um assassino..

Ele tinha o ar das pessoas felizes mas pouco aparafusadas. Aquele ar de quem não chama a atenção. Aquele ar de parvo. Contou-me que fora escolhido para matar treze pessoas. E que mataria sempre à sexta feira. Sofria muito no dia anterior à chacina. Mas sabia que era o correcto. Ele era regido por padrões implementados pelo jornal ou pela TV. Matava os maus das telenovelas, ou os malditos das revistas. Era assim que ele via o mundo, com as suas nuvens que se deslocavam a uma velocidade incrível. Era boa pessoa e parecia ser culto. Valentes desabafos que ele largou nessa quinta feira. "Eu sei que eles merecem, mas sabes, custa-me sempre matá-los como animais". "Não fui eu que fiz as regras" - lamentava. Soube que ele lamentava apenas porque lhe notei uma pequena lágrima a querer esvair-se do olho. Ele parecia sempre inalterável e era difícil perceber as suas emoções. Parecia frágil e perdido. No entanto falava sempre que alguém lhe falava. Não era o tipo tímido, definitivamente. Era só um pouco estranho. Como as famílias dos nossos amigos.
- Vamos comer um gelado? - perguntei. Saiu-me sem querer, juro!
- Pode ser...Não me costumam convidar para as coisas, agradeço.
A partir do gelado falámos apenas das coisas normais. Das coisas que se falam quando se come gelado.

No dia seguinte morri. Ele matou-me.
 
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