sábado, 15 de dezembro de 2007

Desabafo

Subo para o meu escasso vazio, livre para devaneios há muito ocultos. Desço ao meu verdadeiro nível, preso a certos fantasmas. Temo, ao mesmo tempo que venço o medo. O medo confortável e aconchegante. Medo só. Medo bom. Normalmente é de noite que ocorre. É de noite que quase sou eu. É de noite que finjo ser eu. É de noite. Confesso que não me sinto eu desde que nasci. Há sempre partes do meu "eu" que são retiradas do teu "eu". Não há chance. Estou mais racional que ontem. Estou menos racional que ontem. Não interessa. Amanhã o céu vai ser menos azul que nunca. Já nem me ralo com tal. Adorava ser um belo "Imperativo". Talvez do verbo "fazer". Ou "matar". Algo poderoso ou insensível. Mas não passo do "Pretérito Imperfeito" do verbo "querer" ou "sonhar", no máximo.

Missão não cumprida. Fica para a próxima. Assim espero.

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

O Felino (Desespero)

Mas será que eu tenho idade pra sofrer desta maneira (?), pensou ele. Porra, ainda nem tenho os dentes do siso. Deu um pontapé numa pedra. Uma dor aguda no terceiro dedo do pé juntou-se a todas as outras que o minavam por dentro. Bem feita, para ver se aprendes. Passou por um gato. Era cinzento. Nunca o tinha visto antes mas soube logo que era especial. No entanto, sentiu um intenso desejo de fazer sofrer aquele deplorável animal que caminhava, arrogante, no alto das suas quatros patas miseravelmente magras. O gato sorria-lhe de um modo ridículo, o que intensificou ainda mais a sua aversão àquele felino que insistia em troçar de si. Sem tempo para ponderar, agarrou o gato, que não ofereceu resistência. Inexplicavelmente, continuava a sorrir. Parecia mesmo rir-se às gargalhadas, os olhos verdes brilhavam de... (será possível?) satisfação. Como se tivesse acabado de cumprir um objectivo à muito esperado. Sentiu o ódio a inchar, dentro de si, como um balão para o qual é soprado ar a cada três segundos. Pensou que ía rebentar. Queria esfolar, espancar aquele maldito animal. Queria castigá-lo por tudo o que lhe tinha feito sentir nos últimos quatro minutos da sua vida. Não percebia porquê, mas o gato continuava incólume nos seus braços. Não tinha coragem. Sou mesmo triste, pensou, É UM GATO! APENAS UM GATO! Enquanto pensamentos de fraqueza e solidão lhe atravessavam o espírito, o gato parou de sorrir. No seu olhar pacífico, ele sentiu compaixão. Mas que merda! Então eu tenho que aguentar isto da parte de um estúpido gato? Pensava ele, paralisado. Segundos depois, acalmou. Acariciou-lhe as orelhas e levou-o para casa. Deu-lhe uma tigela de leite e percebeu porque não tinha conseguido ferir o gato. Enervado, matou-o. Uma pequena lágrima caiu do olho verde. Tarde de mais, impossível voltar atrás. Acabou-se gato.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

Livre escravidão opcional

Acorda. Na verdade, já estava acordado havia algum tempo. Não dormiu. No entanto, fingia inconscientemente acordar depois de uma bela noite de sono tranquilo. Dirige-se à casa de banho na sua felicidade fúnebre. Adorava dar a ideia que era feliz. Fazia-o bem, de facto. Moroso liga a torneira fazendo-a cuspir jactos de água castanha já habituada aos canos. Contente por controlar um dos quatro elementos, faz com que o líquido ferva. Enevoando assim, o cubículo. Agora sim, pode olhar-se ao espelho. Vê o seu reflexo estropiado, tal como gosta. Parece perfeito. Sorri. Vê o que ele imagina serem os seus dentes aparecerem no sítio que parece ser a sua boca. Disforme, mas óptimo. Sai. Veste-se.

Já fora de casa depara-se com uma clareza agoniante. Mais uma vez, disfarça alegria. Mas o sol designativo de Verão entorpece-lhe o pensamento. O céu está mais azul que nunca. E ele, ele está a ver perfeitamente. Numa inopina ideia, sente-se tentado a dirigir-se para a zona industrial, onde escombro o ajudaria. Mas para quê? Para tomar consciência que ainda sabia o caminho? Iria ouvir pessoas até lá. Iria ouvir as conversas que detestava e os sons insersíveis. Deixou-se estar. Podia voltar para casa, mas o espelho não iria ficar para sempre embaciado e o poder do sono não o iria derrotar tampouco. Estava na atura de se resignar. Assim o faria.

Acorda. Dormiu que nem uma rocha, sereno, desinquietado, preso a uma nova concepção de liberdade. Espera-o mais um dia sem fumo ou nevoeiro.

quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Chhk

De muitas cores e feitios, ou mais bonito ou mais feio, ou maior ou mais pequeno, enfim, infinitas características. Sei de um da espécie que é branco e não muito pequeno, branco cor da paz, mas de bem este inócuo fará pouco. Sim, é inocente esta personagem sobre quem vos falo, é usada, manipulada, emprestada, vendida ou trocada. Para alguns secreto, para outros artefacto ou instrumento. Quem for visto nas proximidades deste senhor ganhará com isso alguns olhares pouco confiantes e outros vindos de cima. Pois ele para uma criança será apenas mais um, para quem souber do que se trata basta um simples "chhk" e solta-se a chama.

terça-feira, 20 de novembro de 2007

É a vida ?

Era escura e enevoada aquela tarde de Inverno. Rui passeava-se por um calejo apertado sem saber bem o que fazer ou pensar. Estava de mal com este tempo emprazador. Precisava do verde, dirigia-se para o parque. Movia-se invectivo e melancólico, não sabendo bem o que o arrastava para o parque à excepção daquela sede de verde. Sentia-se desperdiçado. Atravessava a estrada sem olhar. Podia morrer a qualquer momento. Não se parecia importar. A água caia dos céus ao pouco, menoscabando e remordendo Rui.

Chegou ao parque. O verde imaginado pelo seu remanseado inconsciente parecia agora vómito. Por que é que nunca nada era como ele pensava? Saberia ele pensar?
Rui observava um parque deserto e ingracioso. Injectado de raiva largava berros imaginários, inimizado com o mundo. Não tinha reparado na ingremância da senhora sentada no banco. Nem sequer tinha reparado na senhora. Já não reparava. Fez um esforço para reparar.
Fitava a senhora. Era incrivelmente familiar, no entanto, sabia que nunca a tinha visto antes. Ela olhava-o ininterpretavelmente, o que o fazia sentir-se ainda mais desperdiçado. Virou costas. Debatia-se, devia falar-lhe? O seu raciocínio melanizava, não se conseguia concentrar...

A senhora vestia-se de negro. Tinha uma cara chupada e hermética. Metia medo. Seu olhar voraginoso trespassava Rui. Este sentia-o. O ar zaruco que possuía era tudo menos acolhedor. Contorcia-se. Deixava serem libertos sons da sua própria boca. Nauseante. Sons esses que se assemelhavam a"estrangulamentos". Deixavam Rui imóvel. O afeiçoamento nojento que sentia pela senhora era tal que se esquecera do verde.

...
Não conseguia mesmo. Sabia que tinha de lhe falar, não sabia porquê. Virou-se de novo para ela. Sua postura incivilizável fizera-o dar dois passos para trás inconscientemente. Estacou. A pensar?
De repente sentiu-a, a doce e incisiva coragem a apoderar-se dele que nem álcool. Avançou. As palavras saíam da sua boca muito mais roucas e trémulas que o habitual:
- Conheço-te?
-Sou a tua vida...
E nisto seguiu o seu caminho. À chuva.


sábado, 17 de novembro de 2007

Eu quero morrer de chapéu

A senhora com peças douradas a brilharem e pescoço gordo, cabelo pintado de dourado, faz cara de despercebida e inocente, porque é com interesse e secreta satisfação que vê a figura do pedinte de roupas castanho denso, ossos em relevo e com cabelo escuro pegado de óleo, mas está com a filha e o pedinte está a olhar-lhe nos olhos pequeninos, portanto tem de mostrar outra cara, algo mais a ver com preocupação e generosidade, e sai-lhe aquilo no momento, devia ter treinado melhor ao espelho, devia ter pensado nisso. O pedinte pede à senhora, a senhora doa-lhe a cara, o pedinte afinal não é daqueles ideais, os que não perdem tempo com dúvidas de filantropia, e ao voltar a insistir a senhora dá-lhe uma moeda de dois euros e permite-se a si própria tirar-lhe a cara para se pôr mais à vontade, fechar os lábios em superioridade virtuosa e olhar sem complexos para a personagem trágica. Os pedintes do metro são sempre interessantes, como a sucção criada pelo metro a passar a velocidades estonteantes, mas mais raros. "Eu quero morrer de chapéu, quero mesmo, porque aprecio pessoas como a senhora, asseadas e santíssimas, se eu pudesse também comprava crucifixos d'ouro e tomava banho, mas hoje vou comprar um chapéu" diz João ou António ou Manuel, essa parte não interessa para a senhora, que agora pensa na Virgem Maria e dá mais dois euros ao pedinte, e pensa com todo o respeito bonito que está mesmo com pena do, "Como te chamas?", pensando bem importa, "Não importa", a senhora está confusa e não fala mais. Olha à volta para ver como as pessoas a encaram, ela fez tudo como deve ser, ai das pessoas que a censurem, as pessoas parecem achar que está tudo aceitável ou não achar grande coisa, não se querem meter, querem ter mais dois euros, então reconforta-se pelo teste que já passou na mão da filha de oito anos, que observou atentamente a tudo. O metro chega à paragem e todos saem sem se lembrarem uns dos outros, quase todos para o resto da vida.

Algumas horas mais tarde a senhora está de volta à paragem, desta vez a filha a dar a mão à mãe, com medo que mais pedintes apareçam ("O que é aquilo?"), e por acaso o de anteriormente reaparece, e com um chapéu vermelho. "Sempre o arranjou, que engraçado", sorri a senhora. Depois da senhora pensar isto e à medida que o barulho do próximo metro aumenta, ele começa a correr para a linha do metro. Salta mesmo depois do metro aparecer de lado, e graças à sucção que aparece religiosamente com o metro, o chapéu sai-lhe a flutuar coreograficamente da cabeça para o chão, "Meu Deus, que desgraça, bis!"... A senhora põe a mão na boca, não pelo que viu, mas pelo que viu que pensou.

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Não Sei..

Sempre que perguntava, ouvia um insípido e incapacitado : " não sei". Perguntava várias vezes, e surgia sempre o repetido e maçador "não sei". A inércia com que era cuspido, o encolher de ombros que o acompanhava, a indiferença que o acariciava. Era horrível e detraente. Decidi deixar de perguntar.

Mais tarde ganharia de novo coragem para o fazer...
Perguntei, ao que me foi diferido um pomposo e prepotente :"Sei lá". Vieram-me à mormulha os tempos do "não sei".Tinham acabado! No entanto havia agora uma nova e horrenda maneira de retorquir às questões.A quem quer que perguntasse, a resposta era sempre o mesmo "Sei lá", diabrino e cagão. Decidi deixar de perguntar.

Fará a vida sentido sem a pergunta?
Não sei.
 
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