quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Chhk

De muitas cores e feitios, ou mais bonito ou mais feio, ou maior ou mais pequeno, enfim, infinitas características. Sei de um da espécie que é branco e não muito pequeno, branco cor da paz, mas de bem este inócuo fará pouco. Sim, é inocente esta personagem sobre quem vos falo, é usada, manipulada, emprestada, vendida ou trocada. Para alguns secreto, para outros artefacto ou instrumento. Quem for visto nas proximidades deste senhor ganhará com isso alguns olhares pouco confiantes e outros vindos de cima. Pois ele para uma criança será apenas mais um, para quem souber do que se trata basta um simples "chhk" e solta-se a chama.

terça-feira, 20 de novembro de 2007

É a vida ?

Era escura e enevoada aquela tarde de Inverno. Rui passeava-se por um calejo apertado sem saber bem o que fazer ou pensar. Estava de mal com este tempo emprazador. Precisava do verde, dirigia-se para o parque. Movia-se invectivo e melancólico, não sabendo bem o que o arrastava para o parque à excepção daquela sede de verde. Sentia-se desperdiçado. Atravessava a estrada sem olhar. Podia morrer a qualquer momento. Não se parecia importar. A água caia dos céus ao pouco, menoscabando e remordendo Rui.

Chegou ao parque. O verde imaginado pelo seu remanseado inconsciente parecia agora vómito. Por que é que nunca nada era como ele pensava? Saberia ele pensar?
Rui observava um parque deserto e ingracioso. Injectado de raiva largava berros imaginários, inimizado com o mundo. Não tinha reparado na ingremância da senhora sentada no banco. Nem sequer tinha reparado na senhora. Já não reparava. Fez um esforço para reparar.
Fitava a senhora. Era incrivelmente familiar, no entanto, sabia que nunca a tinha visto antes. Ela olhava-o ininterpretavelmente, o que o fazia sentir-se ainda mais desperdiçado. Virou costas. Debatia-se, devia falar-lhe? O seu raciocínio melanizava, não se conseguia concentrar...

A senhora vestia-se de negro. Tinha uma cara chupada e hermética. Metia medo. Seu olhar voraginoso trespassava Rui. Este sentia-o. O ar zaruco que possuía era tudo menos acolhedor. Contorcia-se. Deixava serem libertos sons da sua própria boca. Nauseante. Sons esses que se assemelhavam a"estrangulamentos". Deixavam Rui imóvel. O afeiçoamento nojento que sentia pela senhora era tal que se esquecera do verde.

...
Não conseguia mesmo. Sabia que tinha de lhe falar, não sabia porquê. Virou-se de novo para ela. Sua postura incivilizável fizera-o dar dois passos para trás inconscientemente. Estacou. A pensar?
De repente sentiu-a, a doce e incisiva coragem a apoderar-se dele que nem álcool. Avançou. As palavras saíam da sua boca muito mais roucas e trémulas que o habitual:
- Conheço-te?
-Sou a tua vida...
E nisto seguiu o seu caminho. À chuva.


sábado, 17 de novembro de 2007

Eu quero morrer de chapéu

A senhora com peças douradas a brilharem e pescoço gordo, cabelo pintado de dourado, faz cara de despercebida e inocente, porque é com interesse e secreta satisfação que vê a figura do pedinte de roupas castanho denso, ossos em relevo e com cabelo escuro pegado de óleo, mas está com a filha e o pedinte está a olhar-lhe nos olhos pequeninos, portanto tem de mostrar outra cara, algo mais a ver com preocupação e generosidade, e sai-lhe aquilo no momento, devia ter treinado melhor ao espelho, devia ter pensado nisso. O pedinte pede à senhora, a senhora doa-lhe a cara, o pedinte afinal não é daqueles ideais, os que não perdem tempo com dúvidas de filantropia, e ao voltar a insistir a senhora dá-lhe uma moeda de dois euros e permite-se a si própria tirar-lhe a cara para se pôr mais à vontade, fechar os lábios em superioridade virtuosa e olhar sem complexos para a personagem trágica. Os pedintes do metro são sempre interessantes, como a sucção criada pelo metro a passar a velocidades estonteantes, mas mais raros. "Eu quero morrer de chapéu, quero mesmo, porque aprecio pessoas como a senhora, asseadas e santíssimas, se eu pudesse também comprava crucifixos d'ouro e tomava banho, mas hoje vou comprar um chapéu" diz João ou António ou Manuel, essa parte não interessa para a senhora, que agora pensa na Virgem Maria e dá mais dois euros ao pedinte, e pensa com todo o respeito bonito que está mesmo com pena do, "Como te chamas?", pensando bem importa, "Não importa", a senhora está confusa e não fala mais. Olha à volta para ver como as pessoas a encaram, ela fez tudo como deve ser, ai das pessoas que a censurem, as pessoas parecem achar que está tudo aceitável ou não achar grande coisa, não se querem meter, querem ter mais dois euros, então reconforta-se pelo teste que já passou na mão da filha de oito anos, que observou atentamente a tudo. O metro chega à paragem e todos saem sem se lembrarem uns dos outros, quase todos para o resto da vida.

Algumas horas mais tarde a senhora está de volta à paragem, desta vez a filha a dar a mão à mãe, com medo que mais pedintes apareçam ("O que é aquilo?"), e por acaso o de anteriormente reaparece, e com um chapéu vermelho. "Sempre o arranjou, que engraçado", sorri a senhora. Depois da senhora pensar isto e à medida que o barulho do próximo metro aumenta, ele começa a correr para a linha do metro. Salta mesmo depois do metro aparecer de lado, e graças à sucção que aparece religiosamente com o metro, o chapéu sai-lhe a flutuar coreograficamente da cabeça para o chão, "Meu Deus, que desgraça, bis!"... A senhora põe a mão na boca, não pelo que viu, mas pelo que viu que pensou.

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Não Sei..

Sempre que perguntava, ouvia um insípido e incapacitado : " não sei". Perguntava várias vezes, e surgia sempre o repetido e maçador "não sei". A inércia com que era cuspido, o encolher de ombros que o acompanhava, a indiferença que o acariciava. Era horrível e detraente. Decidi deixar de perguntar.

Mais tarde ganharia de novo coragem para o fazer...
Perguntei, ao que me foi diferido um pomposo e prepotente :"Sei lá". Vieram-me à mormulha os tempos do "não sei".Tinham acabado! No entanto havia agora uma nova e horrenda maneira de retorquir às questões.A quem quer que perguntasse, a resposta era sempre o mesmo "Sei lá", diabrino e cagão. Decidi deixar de perguntar.

Fará a vida sentido sem a pergunta?
Não sei.
 
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