terça-feira, 21 de abril de 2009

Por: Vargas

Sento-me porque sentir de pé dói mais. Sento-me e olho para as paredes que quietas não tem mais nada para me oferecer que não os meus próprios pensamentos. Eu costumo sentir enquanto penso. Corrigindo, costumo sentir-me mal enquanto penso. Seja lá consciente, inconsciente, subconsciente, não sei quê, o facto é que me provoca dor. Levanto-me (escrever não vai adiantar) porque levantado posso esmurrar melhor a mesa de madeira que não se aleija com o meu sofrimento fisicamente exposto a ela neste momento. Calhando sou dos acabrunhados e não arranjo uma saída melhor que o pensar, que é tão seguro e na pior das hipóteses magoa a minha mão (e não a mesa de madeira) que vai ficando vermelha por causa da violência cobarde de bater em objectos inanimados. Talvez eu só pense que me sinto mal. Com sorte eu não sinto nada e é só o cérebro condutor de explosões que me prega estas partidas. A mim, às paredes e à mesa de madeira. Sento-me porque estou exausto. É difícil decidir se é egoísmo ou altruísmo estar apenas e só subordinado aos meus sentimentos pensados que rara a vez conto ao papel. Não prejudico ninguém (exceptuando a minha pessoa), é facto, mas acabo por não beneficiar alguém sequer também. Vou-me considerando um herpes humano que já não está sentado nem em pé, que não luta porque não sabe como se faz, que se lamenta porque é o melhor que consegue. Não sou mártir nem vítima, não sou exemplo ou explicação. Sou fraco, e hoje admito-o.





Texto escrito e gentilmente cedido por Vargas do Bangladesh

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Roberto

Na sua jaula, ponderava com inúmeros cuidados e repensares: como seria morrer num acidente de avião? Imaginou um pobre coitado no seu último punhado de tempo, desesperadamente consciente de que o que agarra e se lhe escapa é tudo o que mais alguma vez terá. O resto já se lhe escapou antes. As emoções todas retesadas embatem-lhe à velocidade do avião, o suor lugubremente frio escorre-lhe por todo o seu comprimento a medir uma altura de humano... Se quiser correr, nesse momento só pelo corredor e contra a porta da cabine. Fingir ser corajoso, agora que está pobre de tudo? Tudo o que tinha para sacrificar despedaçar-se-ia contra o chão, final, presente e futuro ao mesmo tempo. Sentado, teria que calmamente aceitar o seu dest

- QUATRO EUROS?

Teve de interromper o seu capricho intelectual por momentos quando a senhora abriu a sua cela suja e o trocou a outra, ainda mais velha, por uns trocos. Coisas da vida. Revoltado e agarrado pelo cachaço, nem se conseguia concentrar com decência! Contou as pedras da calçada no caminho para ir passando o tempo. Contou noventa e duas.

- Oh Matilde onde é que vais com ele? Não o segures assim, que vai tão mal
- Olha vai melhor que eu, vai de boleia!

Realmente tinha estado o tempo todo a engasgar-se no balouçar bruto, esforçando-se para respirar como alguém que não sabe nadar e tenta vir acima. Além disso a senhora nem sequer lhe falara durante o percurso (extremamente mal-educada!), não lhe dissera para onde iam nem porquê. Andava já mal, como andam as senhoras velhas para o estilo, uma vez que não podem andar novas. Havia algo nos seus braços fixos que tinha a ver com o não ter companhia há tempo suficiente para criar outro filho e dele receber mais netinhos nojentos. Tinha um óptimo sentido de humor, negro.
Chegaram a uma vivenda, decaída, onde o cadáver de uma mesa de plástico branca e os seus fungos assassinos se arrepiavam com o vento frio que habitava no pátio. Três rapazes, um deles muito pálido, logo o olharam com uma curiosidade que lhe pareceu sinistramente excessiva. Disse um, um pouco sério

- Hey, deixa tocar-lhe! É mesmo bonito…
- Não, vou agora matá-lo e vamos comê-lo ao jantar.
- Fkiiiik

Guinchou, abriu os olhos para as outras pessoas, apeteceu-lhe vomitar a surpresa. Matá-lo, comê-lo ao jantar? Guinou a cabeça para todos os lados ao mesmo tempo que corria, sem saber, em direcção ao muro, os olhos nem viam, estava apenas com a ideia na cabeça, pelos vistos estava tudo doido e nada fazia sentido e

- Agarrem-no!

Apanharam-no facilmente, coitado. Era só tremuras. Mexeu o nariz - era o seu tique nervoso. Um dos garotos fez uma apertada argola com os dedos à volta do seu pescoço...

- É mesmo frágil

e realmente bastava um descuido. Os três miúdos olhavam-lhe e tentavam não apenas fingir a pena, mas era impossível. No fundo estavam entretidos com a desgraça alheia, nada de estranho. Ao mesmo tempo que um dizia

- Oh avó não o mates…

os três rodeavam-no e apreciavam sarcasticamente aquele pêlo ora vivo, ora morto, uma questão de tempo. Algo neles parecia querer germinar enquanto o olhavam, mas não conseguiam entender bem o quê. Encontravam-se perante um defunto adiado, era bem melhor do que um filme: podiam tocar e ver de todos os ângulos (“então é assim…”). E no entanto o fascínio não era físico. Aliás, à medida que aquele tempo desconfortável se arrastava os miúdos achavam cada vez menos piada... ele não parava de lhes olhar. Aqueles olhos pareciam a um os de uma rapariga, a outro lembravam-lhe os seus. Para o terceiro não eram olhos.

- Vou matá-lo com uma cacetada na nuca. Tenho ali um rolo da massa numa gaveta da cozinha, querem ir ver?

Queres ir ver? Teve tempo de exprimir o seu estado de espírito em forma de caganitas, nas escadas para a cozinha. Não era bem isto que imaginara em miúdo que ele próprio iria ser e era isso que o entristecia a esta hora (entre outras coisas). Parecia-lhe agora tudo tão enjoadamente rápido e real que o resto da sua vida poderia ser considerado um sonhozito aguado. Já estava a ver as gavetas! E não pensou, apenas sentiu durante uns segundos, depois de a velha lhe ter torcido a perna para cima por sadismo e para o poder deixar no balcão sem a preocupação de que ele tivesse um pensamento tão mundano como tentar fugir. Chorou para o chão - lágrimas de animal. Uma frase estúpida como “não me senti feliz”. E pensou finalmente, com o focinho a dar para o mármore frio, que nada pode ser prometido e muito menos tem de fazer algum sentido. Não iria haver nenhuma “paz” a aceitar, presumia, se não a tinha ainda cheirado em vida. Mexeu o nariz outra vez, talvez para ter a certeza. Teve bastante sorte em ter tempo para divagar isso antes de a velha lhe abrir o crânio espectacularmente, um fogo-de-artifício doméstico feito de ossos de coelho, sangue muito belo desenhando linhas e bolinhas pelo seu rosto, pelo branco arrancado interessantemente à mão da pele que lhe pertencia, e lá fora mais um dia e miúdos em baixo com uma ainda ligeira sensação do que é uma vida e de que são apenas coelhinhos em casa de velhas.
 
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