domingo, 6 de março de 2022

https://open.spotify.com/playlist/2Zv0mc9O2jcXDPzlkJ98ZV?si=908ddc40c0d54427

Oiço música todos os dias, é uma companhia dos outros constante na minha vida, se imperfeita. Oiço-a sempre. É lugar, memórias, sentimentos e aspirações, e é também o inevitável passar do tempo na sua forma matemática, uma brincadeira intrínseca à experiência com significado que não percebemos completamente mas sabemos que está lá. É alguém a falar comigo de maneira refletida mas livre, ponderada mas fluída, e estou sempre agradecido por isso.

Uso-a muito para me lembrar de com quem não posso estar. Recentemente ao parar de usar o Spotify senti a intensidade com que o associava a essas saudades. Troquei de aplicação, mas o mal está feito. Tinha dezenas de playlists que curava ("Etimologicamente, a palavra curadoria tem origem do latim ‘curator’, que quer dizer ‘aquele que administra’, ‘aquele que tem cuidado e apreço’. O ato de ‘curar’ está relacionado com o zelo, cuidado e atenção com alguma coisa.”, e claro, com sarar, tratar). Fazia-o com muito gosto, a tentar cada vez ser mais específico ou original para que quem amasse tanto (a música?) quanto eu pudesse passar uns bons tempos ali, contemplando alguma associação sonora, passeando pelas sensações na ponte entre as obras, rodeando as letras e as suas várias sombras, deixando-se levar ao ritmo da transição progressiva ou propositadamente abrupta das batidas. Queria que se risse, sorrisse em apreciação, reconhecesse o brilho dos outros e o jogo de luzes com que eu tentava hipnotizá-la, a expressão com que eu estava a falar com ela, a tentar falar com ela, porque ainda existo, estou bem presente em cada instante que oiço de cada música dos meus dias. E em todos esses pedaços de tempo estou atento, como ela, estou a senti-los na sua totalidade, como ela, a reparar nas profundidades ou aborrecido com a sua banalidade, e recebi em mim o mesmo que ela, tanto quanto duas pessoas podem partilhar uma experiência apesar de toda a distância dos corpos, dos tempos, dos quilómetros de silêncios, das enormes sinfonias pessoais por ouvir, enfim, apesar de não existirem uma para a outra, aparentemente. Embora nos percamos no som da música, embora esta pareça um todo que passa, é feita de inúmeros momentos minuciosos que se repetem perpetuamente ainda que únicos, e basta faltar um deles para faltar uma infinitude em si, para a ilusão desaparecer, para sermos forçados a encarar a ausência. 

Todos os dias oiço música imperfeita.

 
Creative Commons License
This work is licensed under a Creative Commons Attribution-Noncommercial-No Derivative Works 2.5 Portugal License.