segunda-feira, 28 de junho de 2010

Já agora

Realizo agora que só há pouco aprendi a ler e a ouvir. Afigura-se-me que nada do que li e ouvi até há um mês bateu. E agora começa a bater tudo da mesma vez só, injusto para mim. Tem tudo que ver com o “estado de espírito”, estado esse que tem estado em fraco estado (eu e as homónimas). Então, as palavras subconsciencializadas aparecem todas agora, como que a fazer chalaça de mim, e eu que nem riposto – “ouve o que te digo” – eu nem fazia caso – “a sério, tu vais dar por ti a chorar” – eu que nem sou de merdas dessas. Toda a minha organização mental, que julgava ser segura e coerente aparece-me agora na forma de ranho, húmus e pingos de sangue. É isso que cuspo. E toda a gente sabe que tu és o que cospes. Às vezes lembro-me do carteiro. Mesmo que a carta não fosse registada pelas finanças ou alguma instituição desse carisma, ele tocava sempre na campainha, porque sabia que inevitavelmente eu o convidaria – “não quer uma cerveja? Veio aqui até ao fim do mundo entregar o correio” – ao início recusava, tímido, depois começamos a ficar amigos, aquele tipo de amigos que duram uma cerveja – “Sabes puto, a minha mulher bazou p’rá França com o meu miúdo e com um filho da puta qualquer, nunca mais chegou a dizer nada” – tinha pouco mais que trinta anos e já carregava em si muitos clichés da vivência social humana – “ Agente ‘tavamos juntos mais por causa do garoto, que aquilo era muita foda por fora, mas eu sempre amei a minha querida, disso não duvides ” – e ia-se embora com mais umas quantas entregas certo de que eu não duvidava do amor dele pela sua querida. O carteiro foi dos primeiros a avisar-me do que era o mundo, mas só comecei a prestar atenção há um mês. O que será feito dele? Terá ido ter com a sua querida à França? Continuará a tocar à campainha à espera de uma cerveja a meio da manhã? Eu tento pintar várias vezes a cara dele na minha mente, o máximo que consigo é obter um pequeno lamiré de farda e barba grisalha numa moto dos CTT. É uma coisa estranha a memória.

A maior parte do mundo perde a vida a pensar nela. Não no sentido de morrer. Perder é um verbo curioso, está demasiado associado a lugares e lugarejos, precisa sempre de ser complementado ou completado para fazer sentido. Não faz farinha comigo. Eu nunca perdi. Nunca perdi porque nunca ganhei. Hoje já compreendo um por cento do que me foi dito e do que li em tempos. Dantes pensava que tinha percebido tudo, mania. Estou até na posição de confessar que estes escritos são bem mais importantes para mim do que para quem os lê, acredito até que nem entendam o que quero dizer na grande maioria das vezes. Acabam por os associar a vivências vossas com as quais nem estejam assim tão confortáveis, e por meio pintelho de palavras ficam com a sensação de corporativismo facilitado. Enganem-se leitores, vocês estão tão sozinhos como eu! Serão tanto de lixo como eu sou se algum dos meus textos provocou em vós qualquer tipo de sentimento ou concordância. Não passamos da escumalha que criticamos, dos odiados que amamos odiar, ou do ténue fio de racionalidade que nos põe a andar. Não passamos de um protótipo do que queremos ser na realidade. Somos zero. E vou eu fazer alguma coisa ( e com certeza que posso fazer, obviamente) para mudar esta situação? Não, eu vou me sentar à espera que um carteiro qualquer me toque à campainha e me peça uma cerveja…

terça-feira, 15 de junho de 2010

A Triunfal vida de Olegário da Silva Soalho

Às vezes Olegário da Silva Soalho passeava e deambulava pelo sereno pensamento de não fazer um rabo. Era bom, era giro e até aprazível esse pensamento que o consumia durante cerca de uma catrefada de tempo. A sério, ele até se sentava à mesa da preguiça tendo um belo diálogo mudo, o qual conseguiam enriquecer com nada. Passava por volta de uma eternidade naquilo, e até quase que pensava em movimentar-se. Poder-se-ia pensar que era um sujeito em estado vegetal, mas não, era puro divertimento em não mexer um neurónio que fosse, quanto mais o mais pequeno tecido muscular, abrir a boca só para bocejar.
Até que um dia decidiu, milagre, Olegário decidira alguma coisa. Fez um blogue na interweb, daqueles variadíssimos blogues onde nada se diz das mais diversas formas, e pessoas da mesma presença de espírito que Olegário, quase inexistente, davam o seu parecer acerca de textos absurdos e incongruentes mas aparentemente muito profundos. Daqueles que na verdade nada acrescentam ao intelecto humano mas assim parecem fazer. Esse blogue foi seguido durante um eternidade, cerca de duas semanas, até que o esforço intelectual leva Olegário a um esgotamento, nem intelectual nem muscular, um esgotamento total, e pela primeira vez foi verdadeiramente o vegetal que nascera para ser, o puro exemplo de marasmo. É verdade, tenho que admitir que escrevi este texto sumptuoso só para ter onde aplicar o termo "marasmo" e até mesmo "sumptuoso", só por serem palavras engraçadas e que não se vê por aí à biqueirada. Continuando a narração dos acontecimentos extremamente interessantes, tornara-se um vegetal, com vegetal entenda-se que estava vivo apenas por ter sinais vitais, o resto estava bom para os abutres, talvez fosse aquilo a que banalmente se denomina de morte cerebral. Mas se reparar-mos bem ele nunca esteve muito vivo a nível cerebral, portanto o termo morte cerebral não me parece muito adequado, vegetal está melhor, que vos parece?
As pessoas que seguiam o blogue estranharam a sua ausência e enviavam cartas electrónicas, nas quais faziam questão de mostrar o seu apreço, também gosto muito desta palavra, pelo autor de tão inaceitável coisa colocada na interweb. É o que acontece à maioria dos que acham que escrevem, nunca possuíram grande inteligência, ou algo que o valha, no entanto acham que são profundos e até mesmo artísticos, duas palavras que me irritam genuinamente pela sua banalização. Mas o fim de Olegário foi um misto de profunda alegria e tristeza, os inteligentes livraram-se de mais um reles gorgulho e os ignóbeis assim continuaram, mas mais tristes.


Texto escrito e gentilmente cedido por Carlus Ferraxius, Imperador de Roma
 
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