domingo, 25 de abril de 2021

This is Ground Control to Major Tom

    Estou com um problema no teclado. Quando carrego nas teclas, em vez de aparecerem letras é acionada alguma coisa: é aberta uma janela do youtube com um vídeo do meu primo que ele já enviou anteontem (e que quero ver para lhe dizer que gosto dele), ou é-me pedido para gravar uma ideia no documento que nem numa porra duma colossal pandemia global eu acabaria, ou algo assim, como se não houvesse expressão, só função

Queres fazer alguma coisa, se calhar? Foi um gemido que ouvi, ou é melhor abrir esta aplicação e por as mãos na massa e eu finjo que não ouvi nada? 

(é assim que O Computador fala comigo)

 Ligo outro teclado ao Computador. Abro o bloco de notas e surge um aviso: "Tem a certeza que pretende continuar?" Clico "Sim", convicto. No pretendimento da continuação carrego numa tecla do novo teclado, e eis que simplesmente aparece uma letra. Nem sequer é a minha, a minha é a mais feia, as professoras diziam-no e eu ouvia-o com orgulho. Tento pôr as mãos no teclado, fechar os olhos, e carregar com força, sentindo tudo. Aparece uma palavra no bloco de notas, "saudade". Nem sequer é o que senti. Não é de todo. A minha saudade não é como a tua. Grito, saem estas letras sem volume. Já ouviram bem este texto, todos os textos? O silêncio? Fecho aquela merda, vou à minha colega de casa. Pego-lhe nos ombros, porque foi assim que aprendi no teatro e nas outras representações com que as outras pessoas tentam desesperadamente comunicar, e digo: 

"..."

Grito: 

"..."

 Sabem quando estão debaixo dágua e nada sai nem nada entra, o que dizem é suprimido, o que ouvem são sombras, e as outras são um borrão? Tento olhá-la claramente nos olhos. Inspirar o ar, fora de água. "aeeeaa", oiço. Eu oiço mais grave que a minha colega de casa, porque saiu da minha garganta. Fico a olhar para o que ouvi, vejo a matéria corrompê-lo e a reduzi-lo. Está oxidado, abandonado para se degradar no meio ambiente. Mas eu sei que ela gosta imenso de mim, que me quer ouvir. Vejo-a pegar nele e a ouvi-lo, e a cara dela transforma-se num entusiasmo de compreensão sorridente: "Ah", diz. Fico aliviado (não como tu estás a imaginar, mas duma maneira única minha e daquele momento, que nunca vais sentir), ela percebe-me. Anuncia-me, satisfeita, "o que tu disseste foi !"

 
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