quinta-feira, 19 de março de 2009

Errado dia

Errado dia, a vaca chinesa decide levantar-se da sua posição provando assim a si própria que pesava mais que uma gorda de toneladas. Já nessa equivocada manhã tinha mascado uns quantos montinhos de erva. Já no certo dia anterior tinha mascado uns quantos montinhos de erva, mas sem se mexer. Desde que me lembro da vaca chinesa, sempre a vi de volta da verdinha rejubilando-se ainda sem fazer a digestão. Nesse errado dia a vaca chinesa tinha, finalmente, decidido levantar toda a sua presuntice. Oh! E que bela vaca que era, a minha vaca chinesa emigrante. Provinha das mais abastadas porcas familias de vacas da India. E, de facto, tinha o seu “je ne sais quois” de sagrado, isso ninguém vivo poderá negar. O seu pêlo ( na verdade não sei se era pêlo, eu adoro imaginar, no meu fetichismo, que sim) negro, preto, escuro, claro, branco. Branco, não o branco poético que gostamos de imaginar dos algodões limpos, não. O branco real, o das paredes velhas que julgo ser bem mais excitante. Era linda sem se levantar, toda a sua quietude a mastigar sensações. Nesse dia levantou-se. Os seus olhinhos inocentes dispostos na horizontal(que na minha ignorância chamava de olhinhos chineses) fixaram o horizonte (porque olhos horizontais nunca iriam fixar o vertizonte) e foi aí que realizei em mim mesmo que ela decidira levantar-se para andar. A tenra vaquinha decidira andar. Quase não conseguia aguentar, mas toda a minha força e coragem que existe ou já existiu paira não sei bem onde, talvez no corpo da bovina que decidira mexer quase todas as suas entranhas musculares, para andar. Ela estava nesse momento a dois metros do que costumava estar, e eu quase sem aguentar, sentado a doer-me. Três metros, eu de rastos. Já mal avistava a minha, a doce, a minha doce vaquinha e decidi tentar tomar alguma coisa semelhante à coragem dos cobardes. Levantei-me também eu mas não como a vaquinha, eu costumava levantar-me, se bem que nunca assim. Costumava levantar-me para me ir sentar noutro lado. Desta vez apressei o passo (como se apressa o passo para não cumprimentar os indesejados) e a vaquinha sempre na minha mira voyeurista que já nem podia de raiva (mas da inofensiva). Ela continuava, tranquilamente decidida, e dirigia-se à cidade (que tinha luzes amarelas,verdes,vermelhas,frias e quentes) com as suas patitas, almofadas suaves lindas, já a ganharem andamento de marcha. Mesmo à entrada da cidade (que tinha muitas coisas de metal cinzento a deitar fumo e objectos flutuantes que se deslocavam tão depressa como os tiros) estava pousada uma casa onde ela parou, escolheu uma bonita casa para parar, é verdade. Uma casa com telhado preto (sempre gostei mais delas assim) de duas assoalhadas e com um adorável puxador de ouro cravado na porta principal.Mas ela não olhava para nada disso. Ela fitava a chaminé, uma bela chaminé feita de pedra trabalhada à mão (fica sempre melhor dizer que é à mão não é?) que não deitava fumo nem fogo. Entre toda a sua calma e as minhas aflições a porta acabou por se abrir através da rotação melodiosa do dourado puxador – Não me parece certo! – e eu a olhar para o senhor que rodava puxadores e que se vestia como os da televisão a pensar se ele teria ou não discernimento para saber o que parecia certo – Não, isto não está mesmo certo! – e a minha suave e querida vaquinha com os beiços a estenderem tristes com a pouca hospitalidade do senhor (que tinha bigode, recordo agora) – O que não está certo tem de ser morto! – e eu que perdia sempre a coragem ao ver armas! – Pum! – e a vaca que segundos antes do – Pum! – olhara para mim em choro de despedida embora com alguma desilusão nos seus olhos dada a minha escassa coragem (inexistente, admito agora) – Já acabei com o errado – fechando assim a porta por trás do seu bigode que sorria mais que a boca e á frente das minhas lágrimas (egoístas, é certo) que derramavam pela minha doce vaquinha chinesa que nunca mais se iria levantar.
 
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