quinta-feira, 21 de outubro de 2010

O senhor Aniceto da portaria vestia-se sempre de castanho, em vários tons – “porque é uma cor que não compromete” – ostentava apenas um doirado Rolex, talvez falseado, no pulso direito – “sou acordeonista, na esquerda nem pulseira” – era manco da direita, nunca lhe perguntei porquê. Gostava de imaginá-lo no seu castanho a tornar-se um coxo sempre por causa de uma história diferente. Um dia imaginava-o no ultramar a ser alvo de catanas, no outro era um acidente de automóvel aparatoso, às vezes num jogo da bola. Tinha um belo bigode farfalhudo, um moustache de super Mário, e também ele fazia biscates de canalização, quando o orçamento assim o apertava. Encontrava-o sempre às dez, na bica e no engate – “desde que morreu a minha esposa (deus a guarde) que estou um bonitão, elas não me largam” – de facto não o largavam, porque nunca o chegaram a agarrar. Tinha particular preferência pela faixa etária dos 12 aos 16 – “esse Carlos Cruz devia ser abalroado por um camião, a violar meninos pequenitos, rapazes!” - apercebia-se da ironia no meu olhar – “filho, uma mulher quando é bonita é bonita, tenha ela 10 ou 60 anos. Repara na minha esposa (deus a guarde) ” – enquanto retirava uma foto tamanho passe da carteira, uma idosa maquilhada até ao crânio de cabelo loiro-branco apanhado com ganchos de capitão e brincos de pérola dos trezentos escudos – “ainda bem que ela morreu, agora é que ’tou pronto p’rás curvas. Ela também sofria muito” – perguntei de que sofria a sua mulher (deus a guarde) – “ tinha um problema chamado Aniceto, teve de morrer para se ver livre dele” – Entre risos e tossidelas. Era este o humor do senhor Aniceto. Um humor castanho como a sua roupa. As senhoras de idade gostavam de dizer que ele punha raticida no chá da esposa, gostavam de dizer que ele era um cabrão. Ele para mim nunca foi cabrão, mas às vezes também eu o gostava de dizer. Sabe bem. A casa do senhor Aniceto ficava ao pé do cemitério – “é da maneira que mando as flores pela janela, não gosto de entrar nesses sítios, anda aí tanta bruxa” – a meu ver o Aniceto nunca sofreu com o coração, era superior a isso, ou então, também o coração dele era coxo e não conseguia sofrer. Onde estou agora, ele é a figura principal, só se fala nele. Um suposto grande amigo dele, envergando um uniforme de trapo diz – “ficou coxo por teimosia, dizia que partia um pilar com o pé” – Nunca tinha imaginado esta, mas realmente encaixa no senhor Aniceto, com aquele sorriso de bonitão escondido por detrás do bigode negro, que contrastava com o seu cabelo de um cinzento bem esclarecido. Estou de frente para ele, ele veste preto(estranho), um fato. O seu Rolex continua lá e o bigode deve ter desaparecido para dentro da sua boca cujos lábios secaram .Vejo as velhotas que lhe chamam cabrão a competir pela melhor pose de idosa triste-choramingona. Atrás dele presumo que sejam amigos do acordeão pois tem todos relógios na mão direita. Pegam todos no caixão com a mão esquerda (para poderem ver as horas com a outra mão, deduzo) e seguem caminho, nem choram. Vão direito ao cemitério ao lado de sua casa. (Eu prometo que vou à sua janela mandar algumas flores). Consigo ler “aqui jaz Aniceto Borges Coitão, marido exemplar, amigo incansável, homem de valores”. Deus o guarde então.
 
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