quinta-feira, 16 de abril de 2009

Roberto

Na sua jaula, ponderava com inúmeros cuidados e repensares: como seria morrer num acidente de avião? Imaginou um pobre coitado no seu último punhado de tempo, desesperadamente consciente de que o que agarra e se lhe escapa é tudo o que mais alguma vez terá. O resto já se lhe escapou antes. As emoções todas retesadas embatem-lhe à velocidade do avião, o suor lugubremente frio escorre-lhe por todo o seu comprimento a medir uma altura de humano... Se quiser correr, nesse momento só pelo corredor e contra a porta da cabine. Fingir ser corajoso, agora que está pobre de tudo? Tudo o que tinha para sacrificar despedaçar-se-ia contra o chão, final, presente e futuro ao mesmo tempo. Sentado, teria que calmamente aceitar o seu dest

- QUATRO EUROS?

Teve de interromper o seu capricho intelectual por momentos quando a senhora abriu a sua cela suja e o trocou a outra, ainda mais velha, por uns trocos. Coisas da vida. Revoltado e agarrado pelo cachaço, nem se conseguia concentrar com decência! Contou as pedras da calçada no caminho para ir passando o tempo. Contou noventa e duas.

- Oh Matilde onde é que vais com ele? Não o segures assim, que vai tão mal
- Olha vai melhor que eu, vai de boleia!

Realmente tinha estado o tempo todo a engasgar-se no balouçar bruto, esforçando-se para respirar como alguém que não sabe nadar e tenta vir acima. Além disso a senhora nem sequer lhe falara durante o percurso (extremamente mal-educada!), não lhe dissera para onde iam nem porquê. Andava já mal, como andam as senhoras velhas para o estilo, uma vez que não podem andar novas. Havia algo nos seus braços fixos que tinha a ver com o não ter companhia há tempo suficiente para criar outro filho e dele receber mais netinhos nojentos. Tinha um óptimo sentido de humor, negro.
Chegaram a uma vivenda, decaída, onde o cadáver de uma mesa de plástico branca e os seus fungos assassinos se arrepiavam com o vento frio que habitava no pátio. Três rapazes, um deles muito pálido, logo o olharam com uma curiosidade que lhe pareceu sinistramente excessiva. Disse um, um pouco sério

- Hey, deixa tocar-lhe! É mesmo bonito…
- Não, vou agora matá-lo e vamos comê-lo ao jantar.
- Fkiiiik

Guinchou, abriu os olhos para as outras pessoas, apeteceu-lhe vomitar a surpresa. Matá-lo, comê-lo ao jantar? Guinou a cabeça para todos os lados ao mesmo tempo que corria, sem saber, em direcção ao muro, os olhos nem viam, estava apenas com a ideia na cabeça, pelos vistos estava tudo doido e nada fazia sentido e

- Agarrem-no!

Apanharam-no facilmente, coitado. Era só tremuras. Mexeu o nariz - era o seu tique nervoso. Um dos garotos fez uma apertada argola com os dedos à volta do seu pescoço...

- É mesmo frágil

e realmente bastava um descuido. Os três miúdos olhavam-lhe e tentavam não apenas fingir a pena, mas era impossível. No fundo estavam entretidos com a desgraça alheia, nada de estranho. Ao mesmo tempo que um dizia

- Oh avó não o mates…

os três rodeavam-no e apreciavam sarcasticamente aquele pêlo ora vivo, ora morto, uma questão de tempo. Algo neles parecia querer germinar enquanto o olhavam, mas não conseguiam entender bem o quê. Encontravam-se perante um defunto adiado, era bem melhor do que um filme: podiam tocar e ver de todos os ângulos (“então é assim…”). E no entanto o fascínio não era físico. Aliás, à medida que aquele tempo desconfortável se arrastava os miúdos achavam cada vez menos piada... ele não parava de lhes olhar. Aqueles olhos pareciam a um os de uma rapariga, a outro lembravam-lhe os seus. Para o terceiro não eram olhos.

- Vou matá-lo com uma cacetada na nuca. Tenho ali um rolo da massa numa gaveta da cozinha, querem ir ver?

Queres ir ver? Teve tempo de exprimir o seu estado de espírito em forma de caganitas, nas escadas para a cozinha. Não era bem isto que imaginara em miúdo que ele próprio iria ser e era isso que o entristecia a esta hora (entre outras coisas). Parecia-lhe agora tudo tão enjoadamente rápido e real que o resto da sua vida poderia ser considerado um sonhozito aguado. Já estava a ver as gavetas! E não pensou, apenas sentiu durante uns segundos, depois de a velha lhe ter torcido a perna para cima por sadismo e para o poder deixar no balcão sem a preocupação de que ele tivesse um pensamento tão mundano como tentar fugir. Chorou para o chão - lágrimas de animal. Uma frase estúpida como “não me senti feliz”. E pensou finalmente, com o focinho a dar para o mármore frio, que nada pode ser prometido e muito menos tem de fazer algum sentido. Não iria haver nenhuma “paz” a aceitar, presumia, se não a tinha ainda cheirado em vida. Mexeu o nariz outra vez, talvez para ter a certeza. Teve bastante sorte em ter tempo para divagar isso antes de a velha lhe abrir o crânio espectacularmente, um fogo-de-artifício doméstico feito de ossos de coelho, sangue muito belo desenhando linhas e bolinhas pelo seu rosto, pelo branco arrancado interessantemente à mão da pele que lhe pertencia, e lá fora mais um dia e miúdos em baixo com uma ainda ligeira sensação do que é uma vida e de que são apenas coelhinhos em casa de velhas.

6 comentários:

Anónimo disse...

O texto está muito bom: realmente todos vivemos uma vida de coelho.
Aguardo o próximo...
Maria 11ºC

Ana Carolina Pimenta disse...

É giro comparar a interpretação que se faz da primeira leitura, quando ainda não se conhece o assunto do texto, com o que se apreende de uma segunda leitura, quando já se sabe que se trata de um coelho.
Gostei =D

Telma Correia disse...

Concordo aqui com a anónima. Estava ansiosa para ler este, e continuo a sentir uma pena terrível pelo coelho.
Gostei*

Sara disse...

Já estva para vir dar uma espreitadela há algum tempo...boa história, dava para ser escrito para uma sociedade a favor dos direitos dos animais...ou para converter as pessoas ao vegetarianismo...ou simplesmente ser lido a um jantar que incluisse coelho...(sorte a minha que nunca consigo comer coelho, mas agora de cada vez que vir alguem a come-lo so vou pensar no narizinho do roberto...). Mas gostei da confusao do inicio da historia, primeiro até pensava que ia existir canibalismo...

nº2 disse...

não é suposto converter ninguém ao vegetarianismo, acho isso meio parvo ^^
é apenas sobre a morte

nº2 disse...

Autor de 2021 checking in:
já não acho o veganismo estúpido, e quem era eu para dizer sobre o que texto realmente seria? E que privilégio que era ter pessoas que me liam, obrigado a todas.

 
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