sábado, 17 de novembro de 2007

Eu quero morrer de chapéu

A senhora com peças douradas a brilharem e pescoço gordo, cabelo pintado de dourado, faz cara de despercebida e inocente, porque é com interesse e secreta satisfação que vê a figura do pedinte de roupas castanho denso, ossos em relevo e com cabelo escuro pegado de óleo, mas está com a filha e o pedinte está a olhar-lhe nos olhos pequeninos, portanto tem de mostrar outra cara, algo mais a ver com preocupação e generosidade, e sai-lhe aquilo no momento, devia ter treinado melhor ao espelho, devia ter pensado nisso. O pedinte pede à senhora, a senhora doa-lhe a cara, o pedinte afinal não é daqueles ideais, os que não perdem tempo com dúvidas de filantropia, e ao voltar a insistir a senhora dá-lhe uma moeda de dois euros e permite-se a si própria tirar-lhe a cara para se pôr mais à vontade, fechar os lábios em superioridade virtuosa e olhar sem complexos para a personagem trágica. Os pedintes do metro são sempre interessantes, como a sucção criada pelo metro a passar a velocidades estonteantes, mas mais raros. "Eu quero morrer de chapéu, quero mesmo, porque aprecio pessoas como a senhora, asseadas e santíssimas, se eu pudesse também comprava crucifixos d'ouro e tomava banho, mas hoje vou comprar um chapéu" diz João ou António ou Manuel, essa parte não interessa para a senhora, que agora pensa na Virgem Maria e dá mais dois euros ao pedinte, e pensa com todo o respeito bonito que está mesmo com pena do, "Como te chamas?", pensando bem importa, "Não importa", a senhora está confusa e não fala mais. Olha à volta para ver como as pessoas a encaram, ela fez tudo como deve ser, ai das pessoas que a censurem, as pessoas parecem achar que está tudo aceitável ou não achar grande coisa, não se querem meter, querem ter mais dois euros, então reconforta-se pelo teste que já passou na mão da filha de oito anos, que observou atentamente a tudo. O metro chega à paragem e todos saem sem se lembrarem uns dos outros, quase todos para o resto da vida.

Algumas horas mais tarde a senhora está de volta à paragem, desta vez a filha a dar a mão à mãe, com medo que mais pedintes apareçam ("O que é aquilo?"), e por acaso o de anteriormente reaparece, e com um chapéu vermelho. "Sempre o arranjou, que engraçado", sorri a senhora. Depois da senhora pensar isto e à medida que o barulho do próximo metro aumenta, ele começa a correr para a linha do metro. Salta mesmo depois do metro aparecer de lado, e graças à sucção que aparece religiosamente com o metro, o chapéu sai-lhe a flutuar coreograficamente da cabeça para o chão, "Meu Deus, que desgraça, bis!"... A senhora põe a mão na boca, não pelo que viu, mas pelo que viu que pensou.

2 comentários:

Pedro disse...

Pescoços gordos são um assunto muitas vezes discriminado, até n'"As tardes da Júlia". Um blog muito promissor.

nº2 disse...

Pedro says:
o homem morreu?
Miguel says:
?
Pedro says:
do chapeu
Miguel says:
morreu
Miguel says:
:(
Pedro says:
e a mulher levou o chapeu?
Miguel says:
não reparei
Miguel says:
talvez tenha levado para recordação
Miguel says:
talvez não

 
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